quinta-feira, 1 de dezembro de 2016

Lido: Atlas das Nuvens

Tenho uma forte desconfiança, formada e reforçada por anos de leitura das coisas mais variadas, por aqueles livros de que toda a gente fala e (diz que) lê, especialmente quando a sua adaptação ao cinema é rápida e só reforça o hype. É raro agradarem-me de todo e, quando agradam, mais raro ainda é agradarem muito.

Há exceções a essa regra, claro. Assim de repente, vem-me à memória O Perfume como um exemplo de exceção, pois quando li o livro já toda a gente parecia tê-lo lido e achado maravilhoso (bem... atendendo à história "maravilhoso" talvez não seja o qualificativo mais adequado) e, ao contrário do que é hábito, também eu terminei a leitura plenamente satisfeito. Mas o hábito é outro.

Atlas das Nuvens de David Mitchell chegou-me também dessa forma, recomendadíssimo por todos e um par de botas, com atores famosos na capa armada em poster (ou vice-versa), e foi de nariz firmemente torcido que me lancei à leitura.

Trata-se de um romance em mosaicos que só não é bastante típico porque as histórias se entrelaçam em camadas, como uma espécie de grande cebola literária. São seis ao todo, todas com dimensões que, se encaradas como histórias autónomas, as situariam perto da fronteira entre a novela e o romance, e quase todas (a exceção é a história central) divididas em duas partes.

Estão interligadas por uma continuidade de personagens, que parecem funcionar como uma só personagem recorrente, talvez reencarnada, uma espécie de cometa humano (embora não tão regular), e cujas vidas se interligam de formas subtis. Alguém escreve um diário; décadas mais tarde, outro alguém (ou outra encarnação do mesmo alguém, quiçá) lê esse diário e escreve cartas que incluem menções ao diário; passam-se mais décadas, e alguém tem nas cartas um motivo de investigação. E por aí fora, de meados do século XIX ao futuro distante e depois de volta até meados do século XIX para concluir as histórias que foram ficando a meio ao longo do mergulho no futuro.

O que se segue, avisa-se desde já, contém abundância de spoilers. Não é possível falar do modo como todas estas histórias se interligam sem revelar os seus enredos e desfechos.

O livro começa (e acaba) no Pacífico, com o Diário da Travessia do Pacífico de Adam Ewing. Este, Adam Ewing, é um pacato notário de São Francisco, em viagem pela Polinésia, um homem cuja decência intrínseca vai pôr em sarilhos, devido em boa parte à sua recusa em aceitar as atrocidades cometidas contra os nativos das ilhas, mas também a doses saudáveis de curiosidade e de inocência. Esta história lê-se quase como um dos romances de aventuras em paragens exóticas, que tão comuns foram no século XIX.

É o diário que Ewing escreve durante a viagem, ou pelo menos parte dele, que o protagonista da segunda história vai encontrar (e roubar) em 1931 numa biblioteca particular. Cartas de Zedelghem, a segunda história, é uma novela epistolar que consiste em cartas enviadas por Robert Frobisher a Rufus Sixsmith, seu antigo amante. Frobisher é um músico inglês deserdado, bissexual e sem vintém que arranja trabalho como amanuense de um velho compositor belga que vive doente e recolhido na sua propriedade, a quem Frobisher ajuda a compor enquanto vai também tentando compor as suas próprias obras. As cartas contam a vida e preocupações do jovem músico e as variadas dificuldades e prazeres nas relações pessoais e profissionais com o compositor (Vyvyan Ayrs) e a sua família e terminam com uma carta de despedida, uma obra musical que ele considera prima intitulada Sexteto do Atlas das Nuvens, e o diário de Ewing. Esta história lê-se como um dos romances mundanos do período entre guerras.

A terceira história, Vidas a Meio - O Primeiro Mistério de Luisa Rey, é um thriller quase policial passado em 1975 e protagonizado por Luisa Rey, uma jornalista californiana cuja vida muda quando conhece Rufus Sixsmith. O velho inglês trabalha agora numa central nuclear na cidade ficcional de Buenas Yerbas e prepara-se para fornecer a Luisa provas de que a central não é segura quando é assassinado. A história segue depois as peripécias por que Luisa passa ao tentar descobrir a verdade, pois isso leva-a a também ser alvo de tentativas de assassinato. Mas acaba por descobrir mais do que procurava. Descobre também as cartas de Frobisher e a sua obscura peça Sexteto do Atlas das Nuvens.

Na história seguinte desaparecem as datas. A Terrível Provação de Timothy Cavendish passa-se num presente não concretizado e é protagonizada por Timothy Cavendish, inglês já bastante entradote e muito pretensioso, editor de uma vanity press, por cujas mãos passa, sem lhe causar grande entusiasmo, o manuscrito de Vidas a Meio - O Primeiro Mistério de Luisa Rey. Infelizmente, Cavendish é obrigado a lidar com gente pouco recomendável devido a certos — e temporários, evidentemente — reveses financeiros, e acaba por fugir, ajudado pelo irmão. Só que a fuga vai levar a que seja internado num lar para idosos mais ou menos taralhocos, cujos dirigentes não consegue convencer de que está ali por engano, e de onde acaba por fugir. É uma história cómica, mas ao mesmo tempo opressiva.

A quinta história, Um Orison de Sonmi ~ 451, leva-nos pela primeira vez ao futuro. Passa-se numa Coreia transformada numa distopia corporativa, num futuro posterior a um desastre de grande monta (provavelmente uma guerra) que não é identificado. Sonmi ~ 451, a protagonista, é uma mulher geneticamente alterada e fabricada para ser servidora dos "puros sangues" (pessoas não fabricadas), que acaba por tomar consciência da sua condição subalterna e por se envolver com uma conspiração revolucionária que a ajuda a ascender a todo o seu potencial. Durante a fase de estudo que essa ascenção implica, Sonmi assiste a um filme antigo intitulado A Terrível Provação de Timothy Cavendish. Mas acaba capturada e a relatar a história da sua vida a um arquivista. É esse relato, gravado num instrumento de registo futurista chamado "orison", que constitui esta história.

Por fim, a história central (a única que é contínua, não dividida em duas partes), Sloosha's Crossin' e Tudo o Que Aconteceu Depois, passa-se no Havai, num futuro ainda mais longínquo e ainda mais distópico, em que a civilização se desfez em barbárie em quase todo o planeta com a exceção de um povo tecnologicamente avançado, identificado como "prescientes". Uma mulher desse povo visita a Ilha Grande do Havai, movida aparentemente por um interesse sociológico, onde contacta uma das várias tribos locais, que adora uma deusa chamada Sonmi. Desperta curiosidade e desconfiança nos membros da tribo, que veem a sua tecnologia como magia e por isso a temem (um dos exemplos dessa tecnologia, diga-se, é um dispositivo holográfico e de comunicação chamado — isso mesmo — orison), e vê-se mergulhada em peripécias perigosas, em parte por isso, em parte porque outra tribo da ilha, mais agressiva, mais bárbara, se lança à conquista, espalhando a morte e a destruição por toda a parte. Esta história é contada pelo filho de um dos membros da tribo visitada pela mulher, que só sobreviveu porque os dois se fizeram ao mar e navegaram até outra das ilhas do arquipélago, e conta-a como uma espécie de lenda, coisas contadas pelo pai, coisas em que ninguém acreditava.

Fim de spoilers.

Este livro conquistou-me por completo. Não só pelas histórias em si mesmas, todas elas complexas e interessantes, nem mesmo pela forma como se interligam, pela estrutura em camadas ao jeito de cebola literária de 600 páginas, mas sobretudo pela forma soberba como Mitchell soube adaptar o seu estilo às exigências de cada história. É quase como se cada uma das partes fosse escrita por um escritor diferente, do bárbaro praticamente analfabeto da história central, ao literato petulante e presunçoso que passa pela sua terrível provação, da ação direta em volta de Luisa Rey aos pensamentos contemplativos de um burguês oiticentista em viagem, chocado pelas crueldades humanas, da precisão quase robótica de uma mulher artificial coreana aos arroubos românticos de um jovem músico inglês.

E pela forma igualmente soberba como Mitchell consegue fazer ao mesmo tempo uma série de homenagens a vários géneros literários. Sendo o livro de ficção científica, porque é a ficção científica que estrutura o mosaico literário que o constitui, encontramos aqui uma série de piscadelas de olho a outros géneros, do policial ao mainstream, à comédia de costumes, à história de aventuras.

Este livro é grande literatura. Grande literatura de ficção científica. De se lhe tirar o chapéu.

Foi uma bela compra.

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