quinta-feira, 22 de junho de 2017

Lido: A Guerra é para os Velhos

Quando, em plena adolescência (teoricamente, a idade em que se gosta dessas coisas) li (e detestei, jurando para nunca mais) duas ou três das space operas da série Lensman do E. E. "Doc" Smith e depois de, alguns anos mais tarde, ter lido (e odiado) o Soldado no Espaço do Heinlein, que ainda por cima em português ficou com aquele título que dificilmente podia ser mais cliché (e a versão mais recente, Soldados do Universo, não é muito melhor), convenci-me de que detestava ficção científica militar.

Essa ideia sofreu um abanão quando me apareceu à frente Guerra Sempre, do Joe Haldeman. Enquanto o lia fui-me dando conta, com não pouco espanto, que tinha nas mãos um grande livro. E as sequelas, não sendo tão boas, também me deixaram a pensar. É que se trata de FC militar, com quase tudo o que se associa ao subgénero e, em princípio, me desagradaria. E no entanto...

Acabei por decidir que era a tal exceção que confirmava a regra e não pensei mais nisso.

Até ler A Guerra é para os Velhos (bibliografia).

É que este livro de John Scalzi também é ficção científica militar e eu também gostei dele. Não tanto como dos de Haldeman, é certo, não é um grande livro, mas é um bom livro.

Por outras palavras, começava a haver demasiado exceções para se aguentar a regra. Se calhar não é de ficção científica militar que eu não gosto, pensei eu cá com os meus botões. Se calhar é de outra coisa.

E então descobri: do que eu não gosto mesmo é de FC militarista.

É certo que as duas coisas andam com demasiada frequência juntas, mas não andam sempre. Guerra Sempre, por exemplo, foi um romance escrito como resposta a Soldado no Espaço, por um autor com experiência vivida do absurdo da guerra (Haldeman é veterano do Vietname) e é tudo menos militarista, não deixando de ser militar por isso. E este A Guerra é para os Velhos, que dialoga claramente tanto com o livro de Haldeman como sobretudo com o de Heinlein, tem uma abordagem semelhante.

O enredo não é muito complexo, pelo menos à superfície. No mundo criado por Scalzi, as pessoas, depois de terem vivido uma vida normalíssima na Terra, chegam à idade da reforma e têm a possibilidade, se muito bem entenderem, de se alistarem nas Forças de Defesa Coloniais e partirem para sempre para o espaço, onde uma nova vida as espera. Uma nova vida e um novo corpo, criado artificialmente com base na sua informação genética mas dotado de um sem-número de melhoramentos que o adaptam às condições duras de uma guerra espacial.

Sim, porque há guerra.

Há guerra e generalizada. A galáxia está enxameada de alienígenas belicosos, todos a competir pelos melhores planetas onde estabelecer colónias, e a humanidade (mais um dos alienígenas belicosos, no fundo) também quer para si o seu quinhão. É para assegurarem esse quinhão que servem as Forças de Defesa Coloniais, e o romance, narrado em primeira pessoa, segue o percurso de um tal John Perry, desde o velho recém-viúvo que encontramos no princípio da história até ao veterano calejado de violentas batalhas em que o vemos tornar-se.

Pelo meio, ficam uma série de temas de toda a relevância. Para começar, a lealdade e o que significa ser-se humano. Lealdade para com a espécie (mas que espécie? Será ainda humano o Perry alterado e sobre-humano que combate nas FDC?), lealdade para com o passado e os sentimentos que nele se foram construindo, lealdade para com camaradas de armas, lealdade, enfim, para consigo próprio. E também a guerra, a sua natureza e o seu absurdo, visto que Perry nunca chega realmente a convencer-se de que toda aquela violência tem algum sentido. A páginas tantas combate com vontade, sim, mas para honrar a memória dos camaradas mortos, por vingança, e não por um qualquer sentido de missão.

E fica também uma história de amor bastante profunda, pois Perry reencontra a sua mulher morta, o amor da sua vida, numa jovem oficial de um corpo de tropas especiais, vindo a saber que esta, gerada e criada artificialmente e com todos os melhoramentos espectáveis num soldado de elite (ou seja: mais ainda que os de Perry), tem na realidade como base genética o ADN da mulher que tinha deixado para trás, sepultada na Terra.

Desagrada sobretudo o excesso de americanice pois, à exceção óbvia dos alienígenas, não há em todo o livro uma só personagem que não seja americana de origem, direta ou indireta. Essa é uma das características que não permitem que este livro chegue perto de Guerra Sempre. Mas é um bom livro, e lê-lo foi uma boa surpresa. É um livro que em vez de se ficar pelo fogo de vista das batalhas e da pancadaria futurista aborda temas complexos com alguma delicadeza e com bastante inteligência. É um livro com conteúdo, este. E isso é quase sempre bom.

Neste caso certamente que o é.

Este livro foi comprado.

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